"O tema Migrações e Fronteiras ocupa atualmente amplos espaços na mídia, na opinião pública, nos debates políticos e nas redes sociais. Aqui, mais do que um estudo propriamente dito sobre a mobilidade humana, pretendo desenvolver alguns elementos para uma leitura aproximada dos deslocamentos de massa nos tempos atuais. Elementos de caráter provisório e fragmentário e que, por isso mesmo, num segundo momento, podem e devem ser complementados pelas experiências concretas de quem trabalha mais de perto nessa realidade."
O texto, rico em potencial analítico e reflexivo da realidade, é composto de cinco seções. Por limite de espaço, foram extraídas apenas as seções quatro e cinco. Para apreciar o texto completo, acesse: "Migrações e fronteiras" 4. Emergência do conceito de fronteira Resulta que dois fatores convergentes – complexidade do fenômeno da mobilidade humana e endurecimento da legislação imigratória – fazem emergir o conceito de fronteira. De uma parte, as migrações atuais diferem das chamadas migrações históricas do século XIX. Estas últimas tinham uma origem e um destino mais ou menos determinados. Os emigrantes saíam de seus países para estabelecerem-se em outras terras e aí erguerem novas cidades e novas nações. Atualmente, sabemos a origem dos fluxos migratórios, mas seu destino final é incerto. Os mesmos migrantes, depois de cortarem as raízes primordiais, remigram com frequência de um país para outro, buscando sempre melhores oportunidades. Em lugar de uma viagem para um novo lugar, temos um vaivém às vezes circular e com rumos imprevistos. Entre os estudiosos do tema da fronteira, tomo de empréstimo algumas observações do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. A partir de seus estudos, constata-se que a restrição crescente à migração legal faz aumentar a pressão dos migrantes sobre os limites entre os diversos países – vale dizer sobre a fronteira. Fronteira neste caso como “não lugar”, não no sentido de Marc Augè (a não familiaridade doa aeroportos e shopping centers, por exemplo), e sim espaço onde os medos misturam-se com novos horizontes; angústias e esperanças andam de mãos dadas, ameaças e oportunidades entrelaçam-se. Trata-se, ao mesmo tempo, de lugar de ninguém e lugar de todos, lugar dos sem pátria e lugar aberto a muitas pátrias. A fronteira se converte numa espécie de espelho invertido das políticas migratórias, ou da falta delas. Já o sociólogo paraguaio Tomaz Palau, ainda nos anos 80, dizia que “o movimento e o dinamismo intensos nos limites entre dois ou mais países constituem um dos retratos mais vivos do processo de globalização”. Com isso o fenômeno migratório torna-se mais dramático e contemporaneamente mais visível. As imagens da fronteira escancaram as feridas e cicatrizes mais vivas da mobilidade humana. Entretanto, mesmo a olho nu, é bem notório a emergência da fronteira como lugar de tensões e sonhos, disputas e alternativas, “alegrias e esperanças, tristezas e angústias”, para citar a frase de abertura da já citada Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Bastam alguns exemplos: limite entre México e Estados Unidos, entre México e Guatemala, entre África do Norte e sul da Europa, entre Turquia e Grécia, entre Peru, Chile e Bolívia, entre Colômbia e Venezuela, entre Venezuela e Brasil, entre Filipinas, Malásia, Indonésia e Singapura!... Os exemplos poderiam ser multiplicados pelos quatro cantos do planeta. As fronteiras se convertem em verdadeiras “panelas de pressão” prestes a explodir, como ao norte da Líbia, na Turquia, no norte do México e na ilha de Batam, Indonésia e outros pontos da Ásia e África. Sonhos e pesadelos aí travam uma batalha sem fim e quase sempre sem horizonte. Num exemplo mais concreto, recentemente a União Europeia fez um acordo primeiro com a Turquia, depois com a Líbia, para o bloqueio às migrações que se direcionavam ao velho continente. Significava, respectivamente, bloquear a rota balcânica e a rota mediterrânea. Em troca da contenção dos migrantes nos respectivos territórios, Turquia e Líbia recebem investimentos regulares dos países da Europa. O acordou trouxe um resultado duplamente nefasto e desumano: de um lado, os migrantes se concentram em acampamentos improvisados, em condições extremamente precárias, chegando a ser colocados à venda (Líbia); de outro lado, os investimentos europeus caem nas mãos de governos instáveis e corruptos, acabando muitas vezes por chegar às mãos dos guerrilheiros – o que aumenta a violência e a fuga de refugiados. O remédio agrava a situação do doente! Em vista de uma melhor compreensão e do trabalho sociopastoral, vale a pena, porém, desdobrar o conceito de fronteira em três dimensões ao mesmo tempo distintas e complementares: fronteira física, geográfica ou territorial, fronteira jurídica e político-social e fronteira cultural-religiosa. Na primeira, geográfico-territorial, o migrante tropeça com a polícia ou o exército, as exigências da aduana, portos e aeroportos, dificuldades de documentação. Encontra muros visíveis ou invisíveis, arame farpado. Muitas vezes a família se divide e muitos podem perder a vida nas areias do deserto, nas ondas do mar ou nas armadilhas de florestas e montanhas. Mais grave ainda quando cai nas mãos dos traficantes que recrutam os mais vulneráveis de entre eles. Na segunda, jurídica e político-social, o migrante tropeça com as leis migratórias do país de destino, o que depende de decisões políticas. Neste caso, a fronteira desloca-se para a capital do país, para o Congresso Nacional e para os gabinetes do governo; tropeça igualmente em situações sociais de precariedade e vulnerabilidade. Na terceira, cultural-religiosa, o migrante tropeça com mentalidades, expressões, visões de mundo e costumes diversos. “Aqui, até a Igreja e os santos são diferentes”, dizem com frequência. As diferenças podem converter-se em muros: surgem hostilidades recíprocas, preconceitos e até perseguição. Não raro os distintos povos, nações ou grupos podem criar “guetos” isolados, fechados sobre si mesmo. Aqui a fronteira se ergue nas ruas, bairros, vizinhança, escolas, comunidades ou paróquias onde o estrangeiro se instala. Talvez seja a fronteira mais difícil de cruzar, porque seus muros são muito sutis e invisíveis. Boa parte dos migrantes conseguem ultrapassar a dimensão geográfico-territorial da fronteira, mas vêm-se impossibilitados de vencer sua dimensão político-social. Acabam permanecendo no país de destino na condição de “imigrantes indocumentados”. Isso significa um estado de permanente vulnerabilidade diante de uma série de problemas e dificuldades, tais como encontrar trabalho, moradia, escola, saúde, etc. Outros conseguem cruzar as duas primeiras dimensões da fronteira, mas se vêm barrados na dimensão cultural-religiosa. Também neste caso tornam-se vulneráveis a todo tipo de preconceito, discriminação e exploração no lugar específico onde resolvem morar (e trabalhar de maneira informal). Por que separar as diversas dimensões da fronteira? Antes de tudo, para melhor compreender a dinâmica e os percalços que os migrantes devem enfrentar em cada uma delas. Depois, para identificar com maior precisão os distintos serviços a ser prestados pela solicitude pastoral e evangélica. Por fim, a partir dessa compreensão ampliada e diferenciada, para melhor integrar as diversas dimensões da Pastoral Migratória num “trabalho orgânico e de conjunto”, como recomenda o Documento de Medellín. Fazendo um jogo de palavras, não se trata somente de um conjunto de trabalhos, e sim de um trabalho de conjunto. 5. Trabalho orgânico e de conjunto Quem atua na fronteira físico-territorial tem em vista uma série de tarefas. Estas vão desde a acolhida, alimentação e documentação, até a assistência social, jurídica e psicológica. Os destinatários podem ser migrantes, prófugos, refugiados, deportados, marinheiros, itinerantes... É o que se faz, em geral e entre outras coisas, nas Casas e/ou Centros para os Migrantes ou no trânsito. Já a atuação na fronteira jurídica e político-social exige um esforço de incidência múltipla nos organismos e instâncias sociais, eclesiais e governamentais, uma parceria com outros atores sociais (igrejas, movimentos, organizações não governamentais, pastorais, etc.) que trabalham no campo da mobilidade humana. Exige também o conhecimento das leis de imigração e o empenho para modificá-la em favor do respeito ao direito de ir-e-vir, correlato ao direito de permanecer com dignidade na própria pátria. Quanto às atividades na fronteira cultural-religiosa, está em jogo o resgate da pessoa, grupo, povo ou cultura. Torna-se indispensável promover espaços onde, por um lado, os imigrantes possam expressar seus valores e expressões culturais e religiosas e, por outro, possam ser ajudados a inserir-se na vida do país que os acolhe, em termos familiares, comunitários, eclesiais, sociais, políticos e culturais. Aqui o mais relevante é sublinhar a atuação integrada e conjunta, o esforço de sinergia entre as várias dimensões da fronteira. O trabalho de uma complementa e reforça as atividades das demais, bem como as lacunas de uma dividem e enfraquecem as atividades das demais. Desnecessário relembrar que o segredo está no trabalho em rede, onde cada tarefa repercute em todas as dimensões da fronteira. Tanto para o migrante quanto para o agente de pastoral que o acolhe, torna-se fundamental saber que os esforços estão conectados com outras duas instâncias que atuam de forma integrada. No fundo, as três dimensões da fronteira requerem tarefas distintas, sem dúvida, mas convergentes na defesa da dignidade e dos direitos do migrante. Convém não esquecer que, de outro lado, quando os problemas das duas primeiras dimensões da fronteira continuam irresolutos, tudo se acumula nesta última fase, onde as comunidades e paróquias pluriculturais ou multiétnicas os acolhem. Claro que, na medida do possível, uma ponte pastoral com os países de origem só pode enriquecer o trabalho sociopastoral. Com todos esses fatores em jogo, permanece o desafio de passar de uma convivência pacífica entre migrantes de várias etnias (multiculturalidade) ao diálogo e confronto reciprocamente enriquecedor (interculturalidade). Sair de si mesmo e deixar-se interpelar pela presença do outro – diria o Papa Francisco – pavimenta o caminho para o totalmente Outro. Retornando à ideia de fronteira como “não lugar” e desde um ponde de vista teológico, nesse terreno ambíguo erra e espera a grande “multidão dos sem”: sem raiz e sem pátria, às vezes sem papéis, sem rumo, sem destino, sem horizonte!... Esse “não lugar” pode converter-se no “melhor lugar” para lançar os alicerces de um “novo lugar”. Jesus Cristo nasceu e morreu fora dos muros da cidade. “Não havia lugar para eles (José, Maria e o Menino)”, escreve o evangelista no relato do nascimento. Os condenados ao patíbulo da cruz, por sua vez, não podiam sofrer a execução dentro da cidade de Jerusalém. Disso pode-se inferir que a mensagem central da Boa Nova do Evangelho mergulha suas raízes na fronteira, no “não lugar”. Ou seja, lugar da utopia, lugar privilegiado para pensar e proclamar o Reino de Deus. De fato, quem nasce e vive em berço de ouro, num lugar firme e estabelecido, pouco se preocupa com mudanças. Somente quem experimenta a inquietude, a incerteza e a solidão da fronteira como “não lugar”, permanece aberto às transformações urgentes e estruturais da sociedade. Busca uma nova pátria! Your comment will be posted after it is approved.
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